Triturar-te-ei

A janela da minha alma está a muito fechada. Eu que tranquei, sete chaves de sete cadeados diferentes, depois chorei pelo que perdi e pelo que ganhei.

Quando quis abri-la outra vez, ela já tinha grades. Não lembrava tê-las colocado, mas estavam lá. A casa que não tinha porta pra evitar entradas estava agora inacessível. À prova de invasões, à prova de Victors.

Relacionamentos… Nós éramos como Bento e Capitu, só que às avessas. Seus olhos azuis eram de ressaca, de álcool, de mar, pouco escondidos por seus óculos de grau que o faziam parecer inteligente. E ele era, de certa forma. Nunca conheci alguém que gostasse tanto de literatura brasileira quanto Victor, o traidor. Muito tempo atrás ele me convenceu a ler seus livros e os esqueceu nesse apartamento pequeno, um em cada armário, cada mesa, banheiro e quarto. Pareceu-me até provocação; ele sabia que eu nos via ali como se estivesse nos olhando parados em frente a um espelho. Ele sabia que eu lembraria.

Andei até a porta da cozinha em passos lentos de quem já está cansado. Li uma vez que andar devagar pode indicar Alzheimer. Ah, quem dera. É uma doença séria, mas às vezes acho que eu lembro demais e não faria mal deixar tudo de lado. Pelo menos por um dia.

Apoiada no batente e com o livro de Machado de Assis em mãos, folheei-o.

Eles não passavam de crianças. Nós também. Bento se perdeu no próprio ciúme e enlouqueceu, quis matar, quis morrer, se fechou. Ta aí de novo. Ele estava em pedaços e instalou grades pra ninguém mais invadir que nem Capitu havia feito.

No fim viveu uma vidinha solitária, insossa e vazia.

Será que é assim mesmo que eu devo seguir? Oitenta é o que eu quero viver e menos vinte e dois, minha idade, sobra muito pra desperdiçar que nem ele fez. Gastar do jeito que ele gastou.

Passei a mão na capa marrom de aparência antiga e desenhei com os dedos os ornamentos dourados. Meus lábios abriram e sussurraram seu nome pra ver como saía, se o gosto das letras juntas era ainda doce ou havia se tornado azedo. Os sobrenomes não mais combinavam que nem antes.

Onde ele estava naquela hora? Bem longe, com outra, eu suponho. Se divertindo e eu aqui, sofrendo, caindo, me dilacerando.

Coloquei o livro em cima da pia de granito preto e abri o armarinho, pegando um liquidificador roxo que havia ganhado de presente. Dele, pra minhas aulas de culinária. Uma lágrima desceu solitária enquanto eu colocava o plug na tomada e encaixava a tampa.

Na minha cabeça, eu pegava uma motosserra e quebrava as grades, libertava os presos e abria caminho pro horizonte. Em realidade, peguei o livro dele e rasguei umas dez páginas. Depois mais. Mais. Mais.

Coloquei todas no aparelho e acionei o “triturar”.

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