De dentro pra fora [New Politics – Dignity]

Samantha riu, girando rápido enquanto seus braços abertos faziam-na parecer uma bailarina frenética no meio do parque vazio, a visão tomada pelo verde e marrom borrado das árvores frondosas e da grama molhada sob seus pés descalços. Parou abruptamente e jogou os saltos prateados longe, apoiando as mãos nos joelhos para tomar ar no meio de sua histeria embriagada. Seus olhos se apertaram e apesar de estar se sentindo enjoada, riu ainda mais.

A risada era estrondosa e ecoava pelos galhos espantando pássaros dorminhocos. Era nervosa, descontrolada; um reflexo direto do quanto a mulher sentia-se confusa e quebrada por dentro.

Cambaleou e bagunçou os cabelos com a mão enquanto tentava organizar tanto seus pensamentos quanto seus passos. Quem dera conseguisse. Quando se acalmava, por um motivo ou outro voltava a imaginar uma vida diferente em que tomara decisões que poderiam leva-la a caminhos melhores. Uma vida em que era outra Samantha, os olhos brilhando de felicidade ao invés de tristeza, acompanhada de pessoas amadas que realmente se importavam.

Olhou para o céu. Quando ela havia acordado por volta das sete da manhã ele era uma mistura de laranja com azul, o degrade mais bonito que ela acreditava que a natureza já havia produzido. Considerava nada mais romântico que o amanhecer. Agora, às oito da noite, nuvens escuras davam pouco espaço às fracas estrelas que tentavam brilhar no teto do planeta.

O cinza do céu fazia seu coração doer e ela não sabia muito bem o por quê. Riu outra vez, com a intenção de espantar as imagens assustadoras que se formavam por trás de suas pálpebras e faziam questão de levar sua sanidade embora, mas foi em vão. Samantha via seus pulmões cinzas dos cigarros que nunca fumou, seu coração mal pulsando sangue pelas veias cansadas e escurecidas. Sua carne derretendo, apodrecendo e necrosando de dentro para fora, deixando em seu exterior a ilusão da pele de boneca com lábios rosados e bochechas coradas. O único sinal da putrefação era o olhar apagado que se perdia observando as multidões na ponte de Westminster, alternando entre o movimento dos pedestres e o das pequenas ondulações na água lá embaixo.

Seus joelhos cederam, assim como suas barreiras mentais contra tais imagens. Caiu deitada na grama sujando seu vestido, antes branco e imaculado, de lama. Agarrou a terra com as mãos, retirando tufos e mais tufos de grama enquanto gritava á plenos pulmões, expulsava pela garganta o ódio e o desgosto que sentia em relação ao que havia se tornado.

Passou os dedos sujos pelas bochechas. Seu indicador traçou sua testa branca e então a ponte de seu nariz, deixando um rastro marrom nesse caminho. Esfregou as mãos pelos braços descobertos e, sentando-se, pelas pernas. Insatisfeita, Samantha deitou-se novamente e rolou na terra já remexida.

Parou. Ouviu o silêncio, a solidão que a cercava. Lembrou-se de como todos haviam fugido, um por um, até que ela tivesse sido deixada sem ajuda em uma rua qualquer. Lembrou-se de como eles riam dentro do táxi amarelo, fazendo piadas a respeito de seu coração partido enquanto ela os xingava à distância.

Quando o primeiro soluço escapou de sua garganta, percebeu que não havia como mentir para si mesma. Ele foi seguido por um movimentar agitado de ombros, mais soluços e lágrimas cheias de mágoa. Levantando a cabeça, gritou outra vez. Porque seus monstros não a deixavam em paz?

Em meio a seu desespero Samantha viu de relance uma luz branca aparecer por entre os troncos de algumas arvores. Elas formavam a figura distorcida de um anjo, um reflexo dela mesma em uma manhã muito distante, antes que caísse. O surgimento da luz foi logo seguido de uma voz forte e masculina que atravessava a madeira:

– Tem alguém aí? – a mulher arregalou os olhos e levantou-se com pressa, subitamente mais lúcida e sóbria.

Não se lembrou de pegar os sapatos prateados enquanto corria o mais rápido possível em direção contrária ao anjo, procurando as grades mais baixas do parque. Escalou a estrutura de metal com dificuldade por causa de seu vestido volumoso enquanto olhava para um céu muito parecido com o que tinha encontrado na manhã de seu casamento.  Há muitos anos as mesmas nuvens a perseguiam.