A parte pelo todo.

“O-o-olhe pra mim,” sua gagueira, incentivada pelo nervoso, tirava toda a sua autoridade. Eu não me importava, considerava só um detalhe, mas ele sempre corava e ficava ainda mais nervoso quando percebia as falhas em sua fala. Era minha função lembra-lo que sua voz rouca continuava extremamente bela, mesmo quando ele se e engasgava com as palavras “eu quero ve-ver seu rosto”.

Eu obedeci, aproveitando para descobrir se algo havia mudado durante o tempo que passamos separados. Dono de olhos castanhos e profundos, era difícil decidir em que prestar atenção: se neles, ou se em seu sorriso, este o mais sincero que eu já havia visto no rosto de alguém.  Os olhos pequenos quase se fechavam e criavam rugas em seus cantos, formando o conjunto mais interessante possível em toda sua inocência.

Fiz questão de comentar em voz em alta, recebendo uma risada envergonhada em troca. Sorri ao reparar em suas bochechas vermelhas em meio a minúsculas sardas. Conhecíamos-nos há tanto tempo e me impressiono quando penso que só fui realmente reparar em todas as pequenas partes que o compõem quando fomos separados por fronteiras.

Agradecia todos os dias pelas férias da faculdade, quando podia encontrá-lo outra vez e dizer em voz alta, durante um abraço, o quanto o amava. Às vezes ele dizia primeiro, às vezes eu, mas era sempre melhor que a primeira vez em que deixamos essas palavras escaparem de nossas bocas.

Seus braços apertaram minha cintura, as mãos espalmadas em minhas costas. Inspirei seu perfume já fraquinho e fechei os olhos enquanto repetíamos o mesmo ritual de todos os verões.

“Eu te amo” ele disse, sem gaguejar ”Senti saudades”.

Artificial.

Na minha condição frágil de ser humano, eu às vezes penso que a vida poderia se tornar mais fácil. Uma das ideias que circula pela minha cabeça é a de como seria maravilhoso acordar de manhã me sentindo feliz e confiante, sem precisar de receita médica.

Imagino como seria não precisar de ansiolíticos para dormir e um batalhão de vícios para me manter acordada. Largaria o álcool, o tabaco, o antidepressivo e a cafeína. Talvez largasse até o sexo se houvesse pelo menos um momento de felicidade plena compartilhada com outro ser humano que não precisasse ser de intimidade forçada e nudez.

Meu sonho mais recente é ficar descalça em um gramado verdíssimo usando um vestido amarelo que se camufla com o campo de girassóis ao meu redor. Os cabelos soltos balançando com o vento, o sol batendo forte na minha pele branca e me deixando corada. Nunca gostei de sol, mas por motivos incontáveis venho querendo me tornar mais pertencente ao reino plantae que ao animalia, mais fotossintética. Parece mais puro e mais vivo, sem as implicações da fala e dos sentimentos intrincados que vêm com a consciência humana.

Não quero mais tomar vitamina D, C, ômega 3, 6 e 9 me servidos em cápsulas gelatinosas ou tabletes efervescentes. Cansei de ser artificial e de observar quem me cerca não se importar nem um pouco com isso. Tenho entrado em desespero ao perceber o mundo de personalidades e sentimentos de plástico em que temos vivido, a falta de gente sincera. Eu mesma não tiro minha máscara antes de me deitar à noite.

Queria que a vida se tornasse mais fácil, mas duvido que aconteça. Daqui para frente, conforme passarem os anos, só consigo enxergar mais conflitos e complicações, mais cápsulas, mais turbilhões. Mas ah, como eu queria diferente.

Na minha condição frágil de ser humano, às vezes tudo que quero é sonhar.

Química.

química

Seus olhos não eram mais os mesmos. Não me lembro do momento exato em que percebi que todo aquele amor e carinho tinham se corrompido e se transformado em ódio.

Não sei se foi rápido como em um mover das pálpebras, se um dia você acordou, olhou pela janela aberta e simplesmente decidiu que não valia mais a pena; Ou também, se demorou e foi lhe corroendo aos poucos, com você mordendo suas unhas e o canto interno de suas bochechas em frustração crescente.

Tudo que sei é que agora eu passo horas sozinha no quarto escuro, aquele em que revelamos as fotos que tiramos da nossa última viagem. Brinco com a câmera analógica comprada por você em um antiquário. Olho pro teto sem realmente ver coisa alguma, tanto pela falta de luz quanto pela falta dos meus óculos. Meus olhos ardem e minha garganta fecha em desespero porque eu sempre odiei estar ali sozinha com o cheiro sufocante de química e agora eu sei que nunca mais ouvirei sua voz ecoar por aquelas paredes.

Passo meus dias me punindo. Passo meus dias sofrendo o que você deve ter sofrido enquanto fingia que tudo continuava igual.

Tudo o que eu queria era ter percebido antes do último segundo que alguma coisa estava errada. Agora só me sinto uma idiota por não ter sido capaz de enxergar todos os sinais. Me pergunto sempre como consegui ser tão cega. Como não percebi que a pessoa que eu dizia mais amar estava se perdendo ao meu lado?

Tiro meu chapéu pra sua atuação, mas lamento cada segundo. Agora tudo que eu vejo quando olho nossos trabalhos juntos e nossas memórias nas paredes é angústia e desespero. Fuga.

As vezes me pergunto se haveria uma chance de lhe parar se eu fosse mais atenta, mas eu tenho me forçado a permanecer longe das marés e livre de ilusões. Seus planos datavam de muito antes do dia em que lhe conheci. É morbidamente engraçado, porque eu achava que havia conseguido lhe salvar.

O orgulho, egoísmo e a cegueira destruíram não só o nosso relacionamento, mas as nossas vidas. A sua vida.

Você me deixou uma carta e por isso lhe retribuo, querendo que saiba que apesar de todas as mágoas eu nunca vou esquecer o que foi bom. Nunca vou esquecer suas lágrimas, tampouco irei me perder do seu sorriso.

Eu nunca?

 

Eu nunca comi temaki.

Eu nunca prestei atenção aos detalhes.

Eu nunca saí do país.

Eu nunca contei todos os meus segredos, nem para o silêncio do meu quarto.

Eu nunca dirigi um carro.

Eu nunca soube quando era a hora certa de parar (ou recomeçar).

Eu nunca tive um cachorrinho.

Eu nunca quis que alguém me ajudasse.

Eu nunca usei uma peruca.

Eu nunca deixei de ter medo.

Eu nunca colecionei algo.

Eu nunca mudei. Até agora.