Pão de queijo.

Sinto ciúme da cidade que te faz refém
pelo passado, pela saudade,
pela lembrança que me esquece.

Você aí.
Eu aqui.

Fico sozinha
em um poço sem fundo que já estava cavado
outros poços em volta,
só faltava me jogar.

Meu coração fisgado
dói no peito
sem motivo além do anzol que você lançou e, bobo ou cruel, nunca vou saber,
“esqueceu” de tirar.

Esquecer.
Isso a gente faz bem.
Você esqueceu de mim
porque eu não esqueço você?

Igrejinha

 

– Se um dia eu casasse com alguém, seria com você.

Era tarde. Os braços de Bruno envolviam Rafaela, seus rostos próximos. Ela olhava os lábios vermelhos do namorado. Ele, os olhos amendoados dela.

– Fico feliz em saber disso – ela riu. Ele franziu as duas lagartas expressivas que em seu rosto se passavam por sobrancelhas.
– Você não casaria comigo?

Um minuto de silêncio caiu sobre os dois. Rafaela continuava sentada na mesma mureta na frente de seu bar favorito. Uma esquina da Rua da Consolação, algo de que, ela sabia, Bruno tinha medo. Ter que ser consolado após sua resposta. Já ele estava em pé a  frente da namorada. A envolvia com os braços parecendo distante apesar do corpo presente, reflexo de seu nervosismo causado pela espera.

– Não. – Rafa sequer deixou que ele abrisse a boca em choque, interrompendo com um beijo a vontade crescente dele de questioná-la. Depois sorriu – Nós não daríamos certo. Somos bons assim, sem muito compromisso. Abraçados na mureta. Sinceramente, Bruno? Nos divorciaríamos em dois meses e, das duas uma: não nos veríamos nunca mais, o que eu não quero. Gosto demais de você pra isso… ou nos encontraríamos nos bares nas sextas à noite de nossas vidas, aqueles que sempre vamos. Aqui no Igrejinha, sei lá. Mas estaríamos amargurados demais um com o outro pra sequer aproveitar a noite juntos. Os beijos seriam violentos, gostosos sim, mas amargos. Eu prefiro seus lábios doces.

Bruno refletiu. Sorriu.

– Se eu tivesse que escolher alguém pra nunca me casar, seria você.

getting to know each other

 

i’m the one you forgot existed
i’m the one you forgot you were

i’m your shadows
i’m your sunkissed thighs

i’m everything you despise and a little bit more

Não viaje.

 

De todas as coisas ela pediu que ele não fosse embora

Caso partisse, quando voltasse

(tinha a certeza de que ele voltaria)

Lhe trouxesse um presente de suas jornadas.

A primeira promessa ele nunca cumpriu

A segunda, em partes

Já que tratou de mandar um cartão postal

Uma foto do Cristo Redentor, felicidades e abraços

Direto dos correios cariocas.

Gênesis 3:19

Faz alguns dias que você não aparece. Pelo menos é isso que o frio que se infiltra até meus ossos me diz. Quando não consigo distinguir o calor da sua presença na calçada rachada, sei que foi tempo demais.

Em alguns momentos pedaços da realidade conseguem preencher a lacuna em algo que um dia chamei de coração: a garoa parece suas lágrimas salgadas. As flores fazem o melhor que podem para me lembrar do que é vida, emprestando seu brilho e sentido. Outras vozes evocam a sua e me distraem por tempo suficiente para que o que haja em mim não seja sempre só escuridão, larvas e melancolia.

O som dos passos esclarece que eu posso estar presa aqui, mas o mundo ainda se move. É difícil e ah, tão raro que alguém além de você venha me ver. Reconheço esse como o principal motivo da minha dependência em sua presença e nos sentimentos que deixa para trás antes de ir embora. Tenho a você e ninguém mais.

Sem você eu seria só mais uma fatalidade. Outro entre tantos acidentes de carro. Uma perda vazia. Sou grata pelos minutos que sacrifica de sua vida ocupada para visitar um lugar em que nunca, antes de mim, você tinha pisado. Caso o contrário, eu seria outra entre tantas lápides empoeiradas e datas que não importam mais.

“By the sweat of your face you shall eat bread, till you return to the ground, for out of it you were taken; for you are dust, and to dust you shall return”

Trançado

O vento desfez as tranças em seu cabelo liso. Ele dançou longo no ar, deu voltas, ricocheteou em suas bochechas como se nunca tivesse conhecido a liberdade.

O sol já havia se posto e a única luz que a iluminava era a da lua cheia. Havia uma lanterna, sim, mas fora desligada e esquecida ao lado do corpo de Ingrid assim que esta se sentou. Estava cercada de tantos elementos naturais que estragar a composição com luz artificial lhe parecia um pecado imperdoável.

Misturados, o cheiro de areia e água salgada invadia suas narinas com força a cada lufada de vento mais forte. A violência das ondas contra as pedras, lá embaixo, a fazia se lembrar de que a vida é bela, mas nem sempre complacente. Pensou no que não deveria, ficando irritada. Memórias da metrópole, da civilização, sobrancelhas franzidas e olhos opacos. Mas outro pecado seria se deixar levar por sentimentos do passado em momentos únicos como aquele. Suspirou.

Uma mão tocou seu ombro. Era Noel, sorrindo enquanto se sentava ao seu lado. Ingrid se apoiou no companheiro e sorriu de volta. Seus olhos fitaram o mar mais uma vez, antes que ela se entregasse à noite e às sensações.

A gente ri de tudo

Eu quero rir com você. Quero te beijar em meio a um riso bobo, olhar dentro dos seus olhos que brilham tanto e descobrir que eu consegui fazer seu dia um pouquinho mais feliz. Aí eu me sinto burra e egoísta: sua felicidade é livre e não minha pra te dar. Ela está em todos os lugares, do ar que você respira aos sobradinhos que você diz serem de arquitetura “tão linda, ah, tão linda!”.

Ai, ai. Espírito livre, não me deixe assim. Eu quero te ver ir embora e voltar porque sentiu saudades, não por saber que o ir definitivo me deixaria magoada. Isso para começarmos de novo, cheios de vontade: mais um riso, outro beijo.

Ai, como eu quero. Quem sabe um dia?

Irreal.

Eu sou a única pessoa no universo. Na verdade nem pessoa sou; me manifesto por uma voz que reverbera em um vazio interminável, uma essência.  Reservo-me à ser somente.

Sua existência nada mais é que minha quimera. Solitária, precisei criar e recriar, brincar com alucinações constantes para manter a insana sã. Você é apenas o resultado dessas brincadeiras.

Todos os sentimentos causados pela sua existência são invenções com o propósito de acabar com a monotonia. Quando meus olhos lacrimejam, é para mudar a rotina. Não é resultado das suas mentiras. Meu coração, então, nunca doeu ao te ver ir embora. Como essência, não há coração nem peito que possam doer.

Eu sou só uma presença e você, minha imaginação. Nada que você faça pode me afetar.

A parte pelo todo.

“O-o-olhe pra mim,” sua gagueira, incentivada pelo nervoso, tirava toda a sua autoridade. Eu não me importava, considerava só um detalhe, mas ele sempre corava e ficava ainda mais nervoso quando percebia as falhas em sua fala. Era minha função lembra-lo que sua voz rouca continuava extremamente bela, mesmo quando ele se e engasgava com as palavras “eu quero ve-ver seu rosto”.

Eu obedeci, aproveitando para descobrir se algo havia mudado durante o tempo que passamos separados. Dono de olhos castanhos e profundos, era difícil decidir em que prestar atenção: se neles, ou se em seu sorriso, este o mais sincero que eu já havia visto no rosto de alguém.  Os olhos pequenos quase se fechavam e criavam rugas em seus cantos, formando o conjunto mais interessante possível em toda sua inocência.

Fiz questão de comentar em voz em alta, recebendo uma risada envergonhada em troca. Sorri ao reparar em suas bochechas vermelhas em meio a minúsculas sardas. Conhecíamos-nos há tanto tempo e me impressiono quando penso que só fui realmente reparar em todas as pequenas partes que o compõem quando fomos separados por fronteiras.

Agradecia todos os dias pelas férias da faculdade, quando podia encontrá-lo outra vez e dizer em voz alta, durante um abraço, o quanto o amava. Às vezes ele dizia primeiro, às vezes eu, mas era sempre melhor que a primeira vez em que deixamos essas palavras escaparem de nossas bocas.

Seus braços apertaram minha cintura, as mãos espalmadas em minhas costas. Inspirei seu perfume já fraquinho e fechei os olhos enquanto repetíamos o mesmo ritual de todos os verões.

“Eu te amo” ele disse, sem gaguejar ”Senti saudades”.

Artificial.

Na minha condição frágil de ser humano, eu às vezes penso que a vida poderia se tornar mais fácil. Uma das ideias que circula pela minha cabeça é a de como seria maravilhoso acordar de manhã me sentindo feliz e confiante, sem precisar de receita médica.

Imagino como seria não precisar de ansiolíticos para dormir e um batalhão de vícios para me manter acordada. Largaria o álcool, o tabaco, o antidepressivo e a cafeína. Talvez largasse até o sexo se houvesse pelo menos um momento de felicidade plena compartilhada com outro ser humano que não precisasse ser de intimidade forçada e nudez.

Meu sonho mais recente é ficar descalça em um gramado verdíssimo usando um vestido amarelo que se camufla com o campo de girassóis ao meu redor. Os cabelos soltos balançando com o vento, o sol batendo forte na minha pele branca e me deixando corada. Nunca gostei de sol, mas por motivos incontáveis venho querendo me tornar mais pertencente ao reino plantae que ao animalia, mais fotossintética. Parece mais puro e mais vivo, sem as implicações da fala e dos sentimentos intrincados que vêm com a consciência humana.

Não quero mais tomar vitamina D, C, ômega 3, 6 e 9 me servidos em cápsulas gelatinosas ou tabletes efervescentes. Cansei de ser artificial e de observar quem me cerca não se importar nem um pouco com isso. Tenho entrado em desespero ao perceber o mundo de personalidades e sentimentos de plástico em que temos vivido, a falta de gente sincera. Eu mesma não tiro minha máscara antes de me deitar à noite.

Queria que a vida se tornasse mais fácil, mas duvido que aconteça. Daqui para frente, conforme passarem os anos, só consigo enxergar mais conflitos e complicações, mais cápsulas, mais turbilhões. Mas ah, como eu queria diferente.

Na minha condição frágil de ser humano, às vezes tudo que quero é sonhar.